Repetência escolar e o impacto na educação de São Paulo

Repetência escolar e o impacto na educação de São Paulo

Carta aberta ao secretário de Educação do Estado de São Paulo

Ao Excelentíssimo Senhor Renato Feder, Secretário de Educação do Estado de São Paulo

O que há de comum entre uma criança com TDAH, outra com dislexia, outra com DPAC, ou simplesmente aquela que aprende devagar — não pior, apenas fora do molde? Todas compartilham um destino paradoxal: nasceram em um século que exalta a diversidade, mas estudam em instituições que ainda exigem uniformidade.

A repetência não nasceu da ciência da aprendizagem, mas da política da obediência. Sua genealogia remonta às escolas coloniais e religiosas, onde educar significava domesticar. Nos colégios jesuítas, regidos pelo Ratio Studiorum do século XVI, o aluno que não alcançava o padrão imposto devia “repetir” — não para compreender, mas para submeter-se. Mais tarde, no século XIX, o modelo fabril da Revolução Industrial substituiu o catecismo pela planilha, mas manteve a lógica: a escola tornou-se uma linha de montagem da conformidade. Quem aprendia no ritmo da máquina avançava; quem não, era descartado como um defeito de produção. Desde então, o erro deixou de ser oportunidade e passou a ser sentença — e a reprovação, um ritual de seleção social travestido de pedagogia.

A instituição escolar, por sua obstinação classificatória, persiste em confundir o sintoma com a essência. Equaciona a dificuldade de método com incapacidade in limine, quando se trata, apenas, de uma variação de ritmo, contexto ou de dialeto cognitivo. Diante do desafio de adaptar-se à pluralidade, o sistema elege a saída mais vil: a repetência. Este não é um ato pedagógico; é a desistência institucional formalizada. Reprova-se o aluno e, nesse ritual, a consciência pública se absolve e se higieniza.

Mas sob qual imperativo moral ou factual subsiste esse ritual punitivo? Pesa sobre a criança, que introjeta o medo do erro como um estigma? Recai sobre a família, que herda o fardo da culpa social? Ou serve à escola, que mascara sua própria insuficiência adaptativa? Estudos da UNESCO, da OCDE e pesquisas internacionais demonstram que a reprovação, na forma como é praticada na maioria dos sistemas, não cumpre seus propósitos. Ao contrário, demonstra-se, com rigor empírico, que essa prática é um vetor de evasão, um solvente da autoestima e um preditor de desempenho futuro mitigado. É um placebo pedagógico que cura a aparência burocrática enquanto adoece o espírito.

A educação que sentencia em vez de discernir abdica do seu propósito soberano: formar a plenitude do ser humano, não apenas classificar estatísticas. A sentença da reprovação germina em ambientes onde o poder do Estado — e, por extensão, das instituições escolares — suplanta o discernimento moral da família. É o reflexo de um paternalismo educacional que, em nome do “melhor interesse da criança”, presume saber mais sobre ela do que os próprios pais. John Stuart Mill advertiu que toda vez que o Estado se arroga o direito de decidir o que é “melhor” para o indivíduo, ele viola o princípio da liberdade — e com ele, a dignidade.

A pretensão burocrática de gerir centenas ou milhares de alunos ignora o vínculo afetivo, singular e insubstituível que liga pais e filhos. Nenhum funcionário, por mais zeloso que seja, possui o conhecimento íntimo, a paciência amorosa ou o senso de proporção que brotam da convivência diária. Ao expropriar da família o direito de participar da decisão sobre o destino do próprio filho, o sistema não apenas comete uma injustiça: comete também um atentado contra o próprio fundamento da responsabilidade individual. Onde o Estado substitui o amor pelo regulamento, instala-se a estagnação; onde a autoridade nega a autonomia, floresce o abuso. Reprovar sem diálogo é, pois, mais do que erro técnico — é uma forma educada de cometer uma tirania bem intencionada.

As nações que ocupam o ápice do desempenho educacional — como Finlândia, Coreia do Sul, Canadá e Japão — compreenderam há décadas que punir a falha é punir o processo de aprender. A Finlândia, desde a reforma educacional dos anos 1970, praticamente erradicou a reprovação: o erro deixou de ser sentença e passou a ser diagnóstico. Onde surge a dificuldade, instala-se apoio especializado; onde há diferença, personaliza-se o percurso; onde há vulnerabilidade, mobiliza-se a rede comunitária. O resultado não foi o caos, mas uma das sociedades mais instruídas, equitativas e inovadoras do planeta — prova de que o rigor e a humanidade não são opostos, mas complementares.

O Brasil, contudo, permanece cativo de um modelo paleo-industrial nascido no século XIX — que dicotomiza 'aptos' de 'inaptos' como se o florescimento da consciência pudesse ser aprisionado em um cronograma fabril. Em vez de identificar o talento latente, perpetuamos a chaga do rótulo do fracasso. Reprovar por diferença de ritmo é como podar uma árvore porque floresce fora da estação — um gesto de impaciência travestido de método.

E o fazemos em uma nação onde muitos alunos, antes de tudo, enfrentam o flagelo da fome, a instabilidade familiar e a desigualdade estrutural. Reprová-los é culpar a vítima pela histórica omissão da sociedade. A repetência converteu-se, assim, na institucionalização da ineficiência pública: o disfarce pedagógico de uma profunda incapacidade administrativa.

A reprovação é também uma falência econômica. Cada aluno reprovado custa à sociedade mais recursos sem garantia de retorno cognitivo. Paga-se duas vezes para ensinar o mesmo erro — e ainda se perde o cidadão que poderia contribuir. É o desperdício institucionalizado, disfarçado de rigor ético.

Não sucumbamos ao autoengano: a repetição é a via de menor esforço para o sistema e a de maior desamparo para o indivíduo. Exige menos esforço criativo, nenhuma reinvenção de método e preserva a aparência de rigor, enquanto destrói o fundamento da autoconfiança. Pior, atua como um mecanismo de transferência de culpa: o fracasso sistêmico é rebatizado como o fracasso da criança.

Consideremos a tragédia de 'Fernando': reprovado em duas disciplinas, ele não aprende que necessita de suporte, mas que é 'insuficiente' per se. O medo suprime a curiosidade inata; a vergonha pulveriza a esperança. No ciclo seguinte, o conteúdo é idêntico; apenas a autoestima é menor.

Dos valores cardeais que a sociedade moderna clama — empatia, inovação, resiliência, pensamento crítico — nenhum deles está condicionado à dominação da tabuada em um prazo arbitrário. O Século XXI exige a soberania da criatividade; mas persistimos em operar como fábricas de obediência.

Senhor Secretário, é imperativo romper esse ciclo de punição travestida de meritocracia. A repetência não educa: apenas perpetua a iniquidade. O desafio que se impõe não é apenas legislativo, mas civilizacional — requer uma transformação cultural e tecnológica. Tecnológica, não no sentido das máquinas, mas dos métodos; da ciência do aprender que o século XXI já conhece, mas que o sistema ainda teme adotar.

Proponho, com o respeito devido à urgência da causa, que o Estado de São Paulo anule por decreto a prática da reprovação por três anos e institua uma Comissão Especial de Pesquisa, Diagnóstico e Alternativas. Essa comissão deve ser mandatada a construir estratégias baseadas em evidências multifacetadas, recolocando o educando no centro de sua própria trajetória.

Que essa instância reúna professores de excelência, neuropsicólogos, famílias e especialistas — e que nenhuma deliberação sobre o futuro de nossas crianças se apoie no argumento covarde do 'sempre foi assim'.

Há soluções ao alcance da razão e da coragem, carecendo apenas de vontade e propósito. Experiências de aprendizagem por domínio, ensino em níveis e percursos formativos individualizados já demonstram que é possível harmonizar o rigor da excelência com a ternura da humanidade. Cabe ao Estado de São Paulo a oportunidade de conduzir essa transição paradigmática — de converter o fim da repetência em marco civilizatório e legar à posteridade o instante em que a educação paulista ousou emancipar, de uma vez por todas, o potencial humano de cada criança.

Como diz um sábio provérbio educacional: 'Todos são gênios. Mas, se você julgar um peixe pela sua capacidade de subir em uma árvore, ele viverá a vida inteira acreditando que é estúpido.'

Temos, portanto, a nobre obrigação de agir ou arriscamos persistir com indústrias de desencorajamento. Que cada aluno encontre, no sistema educativo, o reconhecimento de seu valor e a coragem de florescer segundo seu próprio tempo ontológico e suas características singulares.

Nossa grandeza cívica não se mede pelo triunfo dos mais aptos, mas pelo senso comunitário em que ninguém é olvidado. Em tempos em que a tecnologia e a geopolítica redesenham o destino das nações, nenhuma sociedade que pretenda perdurar pode desperdiçar uma só mente. O maior desperdício de uma civilização é o silêncio de uma consciência que poderia pensar, criar e transformar. O verdadeiro poder de um povo não está em seus muros ou riquezas materiais, mas na soma de suas inteligências despertas no seu capital humano. Quando cada ser humano puder contribuir à luz de seu verdadeiro potencial, o futuro deixa de ser promessa e torna-se uma realidade melhor — para todos.

Com respeito e esperança,
Daniel R. Schnaider
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG